segunda-feira, 6 de março de 2006

Precyz...vate Pernambuco!

" (...) A história dessa garota só poderia ter acontecido nos últimos cem anos, tempos de globalização, guerras civis e exílios em larga escala: Cynthia Zamorano, nascida em Olinda há 26 anos, descende de espanhóis pelo lado materno. Seu avô era uma anarquista convicto, daqueles que queimavam igrejas e molestavam freiras, um maestro que, na guerra civil dos anos 30, se engajou na luta contra os fascistas liderados pelo general Franco. A derrota republicana forçou-o a procurar o doloroso caminho do exílio. A primeira parada foi em Cuba. A segunda o trouxe até o nordeste do Brasil. Diz Cynthia que os espanhóis de mais idade, quando se referem a algum fim de mundo, costumam exclamar "vate Pernambuco!", "vai pra Pernambuco!" em bom português. Essa terra estranha e exótica foi escolhida pelo maestro para construir sua nova vida nos trópicos.A mãe de Cynthia herdou do pai o amor pela música. Apaixonada pelo candomblé, ela entoava loas aos santos recheadas com as influências árabes de sua herança espanhola. Essas duas paixões foram transmitidas para a filha, que ainda na primeira infância voltava das visitas aos terreiros tentando repetir nas castanholas os batuques ouvidos durante os cultos. Cynthia Zamorano cresceu miscigenada, no sangue e na cultura, e nunca mais conseguiu - nem procurou - se livrar disso. Aos treze anos, ela irritava os professores nas aulas de canto do conservatório por insistir em colocar melodias árabes nos estudos de música clássica. Aos quinze, descobriu o Krafwerk e comprou uma bateria eletrônica para armar jam sessions solitárias com suas castanholas. Participações em grupos folclóricos, pesquisas dos grooves do candomblé...sua vida ia nesse prumo quando o drum and bass apareceu nas quebradas chamando a atenção para as íntimas conexões entre os breakbeats, o Maracatu e outros batuques de sua terra. Cynthia se transformou, então, em cYz, e com o codinome gravou no Recife uma faixa chamada Zumbi, mais tarde incluida na coletânea Caipiríssima, do selo nova-iorquino Caipirinha Recors. Esse quem é quem da música eletrônica brasileira contemporânea reunia outros nomes ascendentes da cena, gente como o produtor paulista Apollo 09 ou nosso velho conhecido, o DJ Dolores.O ano da graça de noventa e seis serviu para essa cigana de cabelos loiros e voz delicada fazer sua primeira viagem à Europa de seu avô materno. Em Londres, ela montou um show para a estréia da Batmacumba, festa organizada pelo DJ Cliffy, até hoje uma das mais renomadas noites de latin/brazil/afro/futurefunk da capital inglesa. A volta ao Brasil serviu quase só para arrumar melhor as malas e as idéias para um retorno mais longo.Cynthia Zamorano correu o velho mundo de cima a baixo. Amsterdam, Milão, Paris...mas foi na boêmia Calle de Fuencarral madrilenha que ela estabeleceu sua base mais permanente, aproveitando para conhecer músicos de jazz, produtores, poetas e outros habitantes do underground. As horas e mais horas passadas em relaxadas jams nos estúdios espanhóis forneceram a necessária confiança para se pensar em vôos mais altos. Foi do outro lado da fronteira, em Portugal, que a coisa começou a decolar. Um espectáculo para uma multinacional de publicidade e a participação no FantasPorto, um importante festival de música da cidade do Porto, renderam grana e contatos. Um deles foi com o produtor e guitarrista português João Roquette. Juntos, e de volta a Madri, eles trabalharam em faixas que despertaram a atenção de um renomado selo alternativo luso, o Nylon.
Surgiu, então, o projeto PRECYZ e, nesse mês de março de 2001, o disco com o título homônimo.Dos artistas brasileiros espalhados mundo afora, raros são os que optaram pelos caminhos percorridos por Cynthia e João. Em PRECYZ os ritmos brasileiros estão presentes, o candomblé, o maracatu, toques de samba. Mas essa presença é sutil, bem longe dos clichês que associam Brasil a toques de cuíca e agogô. A escolha de uma produção crua, orgânica, cuidando dos detalhes, mas sem esfriar demais o prato que é servido ao ouvinte, ajuda a deixar mais precisa essa mistura onde entram também elementos de trip hop e breakbeats cheios de malícia.Seria ótimo que Cynthia e seu projeto PRECYZ tivessem a sorte de chegar por aqui. Sempre é bom comprovar que ainda há muita fertilidade no uso cosmopolita e desencanado de elementos locais para gerar música pop de qualidade e alcance universal. E ouvir sua bela voz é recordar uma tradição brasileira de cantar suave que parecia ter se perdido no tempo. Não é à toa que a Nylon promete para breve um disco solo de Cynthia, com faixas produzidas por gente como os austríacos do Sofa Surfers, Howie B e parte da moçada do Faze Action. No seu paraíso anarquista, o avô de cYz deve estar bem satisfeito com os progressos da neta!(..) " (by L, Renato - A Ponte)

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