
Estilhaços é um disco de spoken word, território já explorado por Adolfo Luxúria Canibal nos Mão Morta (assim de repente salta à vista “Gumes”, do último Nus). Aqui, Adolfo Luxúria Canibal continua a ser o “narrador da decadência” que conhecemos e o fornecedor de paisagens António Rafael (no piano, no sintetizador e nas programações) parece aqui a melhor das companhias possíveis. A viagem parece começar no mar (em “De estrelas nada sei”), onde o cantar das aves e outros animais se mistura com o remexer da água e juntos absorvem as palavras de Adolfo, debatendo-se com o seu aparente desconhecimento das estrelas.
“Noite Transfigurável” abre com um piano e conta a história de uma casa, de uma família e de uma máquina. Há um avô que, algo desnorteado, sublinha a palavra “erva”. A mudança de cenário, sublinhada pelo acordar no dia seguinte e pelo nascer do dia, leva a narração para um parque infantil cheio de “putos” e “excursionistas”: “Já davam à volta da mesa que havia à volta dos bancos quando uma excursionista se sentou ao meu lado e ficou silenciosa a olhar em frente / mas eu estava demasiado ocupado a fazer um pica com papel de embrulho que não colava / Depois de muito cuspo pareceu-me enfim seguro e acendi um fósforo antes de conseguir chegar ao pica”. Adolfo Luxúria Canibal trata bem as palavras – di-las com o peso certo, é impossível desviar a atenção da sua descrição.
Um murmurar electrónico e um piano abrem “A filha surda” e pouco depois junta-se um contrabaixo, cenário perfeito para Adolfo percorrer um “desses bairros burgueses de Paris de fachadas idênticas e ruas largas” e narra a história de uma mulher e do seu choro, da sua tristeza profunda causada pela surdez do seu bebé. Além da cidade das luzes onde viveu alguns anos, também Braga merece a atenção neste disco em “Braga, meu amor”, retrato de uma cidade pintado por palavrões, droga, sexo e pela teia sonora mais agressiva do disco, o que evidencia a imagem algo destorcida que Adolfo tem da cidade dos bispos.
Os dois temas restantes, “White light / White Heat” e “O homem aos saltos” (quase cabarética) ajudam a provar a ideia que este não apenas um disco para se ouvir enquanto se espera pelo próximo registo dos Mão Morta. É um disco onde Adolfo Luxúria Canibal se sente em casa e onde desenvolve um trabalho distinto (mas não demasiado, não irreconhecível) daquele que consegue nos Mão Morta e nos Mecanosphère. Estilhaços é, em variadas ocasiões, um disco de estonteante e perturbadora beleza. Estes sete textos transformados em registo sonoro transpiram crueza e realismo – são obviamente retratos da decadência.
(Editora: Transporte de Animais Vivos, 2006)
Sem comentários:
Enviar um comentário